Mais do mesmo: a falta de diversidade na pesquisa de plantas
Uma opinião sobre o artigo: “Uma análise crítica da literatura de ciência de plantas revela desigualdades contínuas”1
Você já deve ter ouvido falar que o Brasil é o país com a maior biodiversidade do mundo. Então, seria de se esperar que o mesmo fosse líder em pesquisa com plantas, não é mesmo? No entanto, a realidade é um pouco diferente.
Para entendermos melhor esse cenário, precisamos saber que a maioria das pesquisas nessa área se concentra em plantas alimentícias ou espécies-modelo (que são plantas utilizadas para estudar os níveis mais fundamentais da biologia vegetal)1. E mesmo conhecendo-se cerca de 350.000 espécies de plantas e que várias delas são usadas para a alimentação - aproximadamente 7.000 espécies - somente 417 são consumidas em larga escala2. Dessas, apenas 15 espécies compõe a base alimentar mundial, como o arroz, o milho e o trigo3, e são justamente essas as plantas mais estudadas.
É nesse momento que você pode estar se perguntando: se essas plantas são tão estudadas, então já sabemos o suficiente para produzi-las de forma eficiente e produtiva, certo? No entanto, fatores como o aumento na demanda, as mudanças climáticas, o surgimento de novas pragas e a busca por um sistema produtivo mais sustentável continuam gerando uma necessidade constante de melhorias.
Enquanto essas plantas são exploradas, outras espécies são negligenciadas. Dentre as plantas mais pesquisadas no Brasil estão a cana-de-açúcar, a soja, o milho, o café, o tomate, a laranja, o feijão e o maracujá1, sendo apenas o último um fruto originário do país. No entanto, o conhecimento popular (revelado por estudos de etnobotânica e ciência cidadã) aponta para uma diversidade de plantas nativas menosprezadas pela ciência tradicional. Um exemplo disso, a mangabeira, planta cujos frutos são amplamente consumidos in natura ou em polpas e sorvetes, além de possuir propriedades medicinais, é listada como uma espécie prioritária para estudo4, mas não está entre as plantas mais pesquisadas no Brasil.
Essa situação é ainda agravada pela concentração de recursos de pesquisa em países do hemisfério norte, sendo a Europa, a Ásia e a América do Norte responsáveis por cerca de 82% das publicações sobre ciência de plantas1. Esses países concentram a pesquisa em espécies-modelo e plantas de grande interesse agrícola, enquanto pesquisas com espécies menos conhecidas ou de relevância regional são poucas. Cria-se, então, um ciclo de interesse contínuo por espécies que são amplamente estudadas há anos, consolidadas na base alimentar e econômica de países do hemisfério norte.
Além disso, a ciência de plantas é majoritariamente conduzida por homens, principalmente europeus, norte-americanos e asiáticos. Nos últimos 20 anos, cerca de 175.000 artigos científicos nessa área tiveram homens como o autor correspondente - ou seja, aquele que liderou a pesquisa - enquanto apenas 75.000 foram liderados por mulheres1. Em geral, artigos publicados por homens são mais citados do que aqueles publicados por mulheres5, e parece haver uma tendência entre homens em considerar apenas a si mesmos como fontes confiáveis de conhecimento, com 78% citando preferencialmente homens e 56% citando os próprios artigos6.
Para além das citações, um levantamento indica que a discriminação contra grupos minoritários e suas produções científicas começa logo no primeiro contato com as editoras7. Gênero, raça e origem dos autores de artigos podem influenciar, por exemplo, quanto tempo este artigo ficará sob revisão8. Como se autores que “aparentam ser” homens brancos, seja pelo sobrenome ou instituição de pesquisa, sejam mais confiáveis e, portanto, não necessitem de um processo de validação tão minucioso de seus dados e resultados. Enquanto isso, mulheres, minorias étnicas e pesquisadores de instituições latino-americanas e africanas, são descredibilizadas, passando por um processo longo de revisão, atrapalhando o caráter de novidade de seus trabalhos.
E, embora haja um aumento em estratégias para incentivar a participação de grupos minoritários9, com ações de diversidade, equidade inclusão (DEI) ainda há uma falha em valorizar o conhecimento gerado por mulheres, negros e indígenas, criando, assim, um viés na priorização de temas de pesquisa a serem financiados e publicados. Apesar do incipiente reconhecimento do conhecimento indígena, são inúmeras as contribuições, por exemplo, para a compressão da ecologia, fisiologia e evolução de plantas10.
Diante disso, vemos que falta diversidade na ciência de plantas, tanto no número de espécies vegetais pesquisadas, quanto nos grupos de pessoas que as pesquisam mundialmente. Portanto, é crucial buscar uma maior equidade e inclusão para valorizar a rica biodiversidade do Brasil e do mundo e garantir uma segurança alimentar mais diversa e com menos do mesmo.
Nota: o artigo científico que inspirou esse texto foi publicado em uma revista paga. Apesar dos investimentos para o acesso ao conhecimento científico pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por meio do portal Periódicos CAPES, não consegui ter acesso a uma cópia da publicação. Para ter acesso às informações, busquei uma versão gratuita disponibilizada em forma de preprint – um texto disponibilizado em versão prévia à publicação e compartilhado pelos próprios autores. Este, entre outros fatores, exclui pesquisadores de países do hemisfério sul, com menos recursos para investimentos em educação e ciência. O elitismo na ciência, além de padrões misóginos e racistas, também são discutidos na publicação citada.
A) As 20 espécies de plantas mais estudadas em todos os estudos. B) As 9 ordens mais estudadas para grupos não vegetais (animalia, fungos e bactérias). C) O número observado de estudos investigando cada ordem ou plantas terrestres menos o número esperado se o esforço de amostragem tivesse sido distribuído uniformemente em relação à riqueza de espécies. Fonte: Marks et al., 2023¹
Referências
1. Marks, R. A. et al. A critical analysis of plant science literature reveals ongoing inequities. bioRxiv (2023).
2. Antonelli, A. . et al. State of the World’s Plants and Fungi. (2020).
3. Briggs, H. Comida do futuro: as plantas pouco conhecidas que podem nos alimentar em 2050. BBC News (2022).
4. Nunes, V. V., Silva-Mann, R., Souza, J. L. & Calazans, C. C. Pharmaceutical, food potential, and molecular data of Hancornia speciosa Gomes: a systematic review. Genet. Resour. Crop Evol. 69, 525–543 (2022).
5. Chatterjee, P. & Werner, R. M. Gender Disparity in Citations in High-Impact Journal Articles. 4, 1–8 (2021).
6. Chawla, D. S. Men cite themselves more than women do. Nature (2016).
7. Heidt, A. Racial inequalities in jounals highlighted in giant study. Nature (2023).
8. Liu, F., Rahwan, T. & Alshebli, B. Non-White scientists appear on fewer editorial boards , spend more time under review , and receive fewer citations. Proc. Natl. Acad. Sci. U. S. A. 120, 1–10 (2023).
9. Greider, B. C. W. et al. Increasing gender diversity in the STEM research workforce. 366, (2019).
10. Jessen, T. D., Ban, N. C., Claxton, N. X. & Darimont, C. T. Contributions of Indigenous Knowledge to ecological and evolutionary understanding. Front Ecol Env. 93–101 (2022) doi:10.1002/fee.2435.
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