E os transgênicos?

O que aprendemos após 40 anos desde o surgimento da primeira planta transgênica?

As plantas são uma ampla fonte de recursos, fornecendo alimentos, medicamentos e até combustível aos seres humanos. Porém, os cenários de mudanças climáticas representam uma crescente ameaça, com impacto iminente na produtividade de plantas cultivadas. As previsões apontam para a intensificação da seca, a redução de terras aráveis e a escassez de água destinada à  agricultura1. Além disso, o crescimento populacional e a conversão da economia para um consumo mais sustentável, baseado em recursos renováveis, irão demandar uma produtividade ainda mais elevada das plantas cultivadas 2.

Por séculos, as plantas foram multiplicadas com o intuito de aumentar a sua produtividade. Essas plantas passaram por um processo de seleção de diversas características de interesse agrícola, como espigas de milho com mais grãos ou maracujá com mais polpa. E, apesar dos avanços positivos para agricultores e consumidores, a seleção de características resultou na redução em diversidade das espécies cultivadas3. Ao se escolher o milho com mais grãos, cria-se uma maior homogeneidade no plantio, e perde-se, por exemplo, o milho capaz de tolerar altas temperaturas ou sobreviver a doenças que ainda desconhecemos.

Com a motivação de recompor essa diversidade genética perdida durante o tempo, criou-se em laboratório a capacidade de transformar plantas por meio de mutações induzidas. Devido a aleatoriedade da mutação, abriu-se um mundo de possibilidades com essa inovação, desde o simples regaste de características primitivas até a criação de X-Men vegetais, como plantas capazes de alta produtividade consumindo poucos recursos.

Mas a verdade é que mutações, mesmo induzidas em laboratório, não possuem tanta eficiência4. Ou seja, dentre as poucas plantas que sobrevivem ao processo, menos ainda possuem a mutação desejada. E estas poucas mutações bem-sucedidas são clonadas (veja aqui o meu texto sobre clones de plantas) para a manutenção da característica destes indivíduos.

Percebe-se, então, que este é um processo muito custoso, pois as mutações muitas vezes acontecem de forma a impossibilitar o desenvolvimento do vegetal. Assim, na busca do aperfeiçoamento da técnica para criar modificações de maneira mais direcionada, criou-se a transformação de plantas por edição gênica. Em 1983, um ano após a aprovação do primeiro produto criado a partir de um Organismo Geneticamente Modificado (OMG) - uma insulina para o tratamento de diabetes - criou-se a primeira planta transgênica5.

O desafio inicial veio na introdução do DNA modificado em uma célula vegetal. As transformações em estudos anteriores, com outros organismos, não apresentavam as mesmas dificuldades das células de plantas. Bactérias, por exemplo, são organismos com estruturas mais simples, cujo interior pode ser acessado com correntes elétricas para a abertura de poros em suas membranas. Já plantas possuem externamente à membrana citoplasmática, uma parede celular que confere firmeza aos tecidos; Embora essa estrutura permita que as plantas se mantenham em pé e até mesmo produzam madeira, ela também dificulta o acesso ao conteúdo celular6.

Foi a partir de então que a ciência fez uso de um fenômeno natural para superar esse desafio: a capacidade de bactérias em penetrar as células de plantas durante uma infecção passa a ser usada como metodologia para a introdução de DNA em células vegetais. A bactéria em questão, a Agrobacterium tumefaciens (Bacterium tumefaciens), na natureza, é responsável por uma infecção tumorosa em plantas, conhecida como galha ou cancro, e causada pela introdução de plasmídeos – moléculas de DNA bacteriano capazes de se reproduzirem independentemente7.

Para o uso dessa técnica, os plasmídeos são modificados, retirando-se a parte genética responsável pela doença, os genes oncogênicos. Tem-se, então, devido a capacidade de penetração nas células vegetais, um vetor perfeito e inofensivo para transportar o DNA de interesse para as plantas a serem transformadas. A primeira planta transgênica foi o tabaco, nomeado tabaco Bt (Bacterium tumefaciens), com a capacidade de resistir à aplicação de antibióticos usados para confirmar a eficiência da transformação5.

Mas como sabe-se, a introdução de DNA bacteriano em células de plantas usadas para a alimentação causou grande comoção8. As pessoas tinham receio em consumir alimentos geneticamente transformados com conteúdo bacteriano em sua composição. A preocupação era justa e baseou-se no princípio da precaução, inspirando medidas internacionais como o Protocolo de Cartagena. Porém, muita desinformação também foi disseminada para criar um maior alarde sobre o uso dessa técnica.

Hoje, 40 anos após a criação da primeira planta transgênica, o que se conhece sobre os efeitos de plantas Bt na saúde humana é que estas não apresentam características de toxicidade ou alergênicos9. Além disso, foi identificada a presença de DNA bacteriano ocorrendo naturalmente em batata doce10, um processo que provavelmente aconteceu durante a evolução da espécie e foi selecionado em meio a sua domesticação – justamente por estar associado às plantas com características de interesse agrícola. Nota-se, então, que o processo de transformação de plantas em laboratório é muito mais próximo do que imaginávamos de algo que acontece na natureza.

Então, por que ainda existe tanta preocupação com o surgimento de novos cultivos geneticamente modificados? Bom, além de uma preocupação remanescente em relação ao consumo e saúde humanos, existe todo o impacto do processo produtivo destes alimentos. Para muito além da ingestão de DNA bacteriano, o cultivo de plantas transgênicas está associado a transformações químicas e biológicas por onde passa.

Os cultivos de plantas transgênicas, são, em sua maioria, feitos com vegetais modificados para resistir a agentes químicos herbicidas ou pesticidas, assim as plantas permanecem produtivas enquanto seres prejudiciais à produção, como “plantas daninhas” e insetos-praga são eliminados11. Consequentemente, estas plantas são produzidas de forma associada a produtos químicos de alto impacto, tanto na saúde humana quanto no ambiente.  

O manejo das plantas transgênicas associadas a pesticidas exerce uma elevada pressão de seleção sobre as populações dos insetos-praga, podendo, caso não seja bem-sucedido, criar populações de insetos ainda mais resistentes. O processo acaba afetando, também, insetos polinizadores, como as abelhas, que são muito importantes tanto para ambientais naturais quanto para as plantações. Além dos insetos, os microrganismos do solo podem ser afetados por plantios de cultivares transgênicos que acabam liberando substâncias no ambiente.

Outro risco seria em relação ao cruzamento, ou fluxo gênico, entre plantas transgênicas e nativas. Porém as grandes culturas plantadas no Brasil foram introduzidas de outras regiões e não possuem espécies silvestres com as quais possam cruzar. O mesmo não pode ser dito para o cruzamento entre as plantas transgênicas e as não-transgênicas, muitas vezes cultivadas de forma orgânica.

Em todo caso, o plantio em larga escala é um processo de alto impacto no ambiente e o seu manejo precisa ser regulamentado e fiscalizado. O uso de controle químico, por meio de herbicidas e pesticidas, é inerente à agricultura brasileira, seja ela de cultivo transgênico ou não, trazendo diversos riscos de biossegurança. O surgimento de cultivares de plantas desenvolvidos para o uso associado a novos produtos químicos continua causando grandes preocupações.

Tecnologias mais recentes, chamadas de Técnicas Inovadoras do Melhoramento de Precisão (TIMPs)12, buscam eliminar algumas das preocupações sobre o desenvolvimento de novos cultivares de plantas. A técnica CRISPR de edição gênica, por exemplo, além de ter maior eficiência, ainda é capaz de realizar transformações no genoma das plantas sem o uso de DNA exógeno. Por isso, órgãos nacionais e internacionais discutem a possibilidade de não rotular esses cultivares como transgênicos – um avanço sobre as preocupações da população em geral.

É evidente que os avanços em inovação no campo agrícola impulsionam grandes transformações. Esse processo, quando pautado em ciência e ética, possui alta capacidade de revolucionar a produção de alimentos. É importante destacar que avanços moleculares, de mutações à edição por CRISPR, são criados a partir da compreensão e aplicação de fenômenos naturais. E estes, até o momento e atendendo às normas vigentes de biossegurança, não apresentam riscos ao ser humano. Porém, o manejo de grandes cultivos agrícolas está associado à diversas práticas dentro de um ecossistema. A busca pelo equilíbrio deve ser primordial na aplicação destas tecnologias, avaliando-se os possíveis efeitos adversos, de curto à longo prazo, ao ambiente como um todo.

Para continuarmos impulsionando grandes transformações, é necessário que a população esteja bem-informada. Somente com o conhecimento daquilo que estamos reivindicando, boicotando ou incentivando é que podemos tomar decisões assertivas para o bem coletivo. E para não dizer que eu não falei mais sobre os X-Men, lembra-se que toda a narrativa do medo que sentiam dos mutantes era pautada em preconceito e desinformação? Então, depois dessa leitura, você acha que os transgênicos são tão injustiçados como a Tempestade e o Professor Xavier ou eles merecem a fama de vilão que têm?   

Você sabia?

Tá, tudo bem. Os meus textos não têm uma sessão de “Você sabia?” como as revistas dos anos 90, mas eu me reservo esse espaço ao final para fazer um comentário mais sincero. A polemica sobre a transformação genética sempre me deixou muito confusa. Eu não conseguia entender o tamanho do receio em relação ao DNA exógeno, ou seja, o DNA de bactéria. Veja, eu não tiro a razão de quem prefere se precaver e tentar observar os efeitos dessa tecnologia à longo prazo. Mas também fico sempre me lembrando que somos feitos de DNA de bactéria. Caso você não saiba, ou tenha esquecido da aula de biologia sobre organelas, os seres vivos, plantas e animais, incluindo humanos, possuem organelas chamadas de mitocôndrias. Estas são as produtoras de energias nas células, mas na verdade, são provenientes de bactérias que foram assimiladas milhares de anos atrás. Até mesmo o DNA presente nessas organelas difere do DNA humano e está mais próximo do DNA de bactérias. Então, sim, nós somos feitos de DNA exógeno também. Claro, esse é um pensamento muito simplista em relação a transgenia, mas eu gosto usá-lo para provocar questionamentos e quem sabe até uma mudança de pensamento.  

Referências

1. Dai, A. G. Increasing drought under global warming in observations and models. Nat. Clim. Chang. 3, 52–58 (2013).

2.         Lenaerts, B., Collard, B. C. Y. & Demont, M. Review: Improving global food security through accelerated plant breeding. Plant Sci. 287, 110207 (2019).

3.         Louwaars, N. P. Plant breeding and diversity: A troubled relationship? Euphytica 214, 1–9 (2018).

4.         Ren, F. et al. Efficiency optimization of CRISPR/CAS9-mediated targeted mutagenesis in grape. Front. Plant Sci. 10, 1–9 (2019).

5.         Fraley, R. T. et al. Expression of bacterial genes in plant cells. Proc Natl Acad Sci 80, 4803–4807 (1983).

6.         Leonor, A., Gómez-lim, M., Fernández, F. & Loske, A. M. Physical methods for genetic plant transformation. Phys. Life Rev. 9, 308–345 (2012).

7.         Bower, D. M. & Prather, K. L. J. Engineering of bacterial strains and vectors for the production of plasmid DNA. Appl Microbiol Biotechnol 805–813 (2009) doi:10.1007/s00253-009-1889-8.

8.         Malyska, A., Bolla, R. & Twardowski, T. The Role of Public Opinion in Shaping Trajectories of Agricultural Biotechnology. Trends Biotechnol. xx, 1–5 (2016).

9.         Mendelsohn, M., Kough, J., Vaituzis, Z. & Matthews, K. Are Bt crops safe ? Nat. Biotechnol. 21, 1003–1009 (2003).

10.       Kyndt, T. et al. The genome of cultivated sweet potato contains Agrobacterium T-DNAs with expressed genes : An example of a naturally transgenic food crop. 112, (2015).

11.       Ferry, N. et al. Transgenic plants for insect pest control : a forward looking scientific perspective. Transgenic Res. 13–19 (2006) doi:10.1007/s11248-005-4803-x.

12.       Molinari, H. B. C., Vieira, L. R., Silva, N. V. e, Prado, G. S. & Filho, J. H. L. Tecnologia CRISPR na edição genômina de plantas: biotecnologia aplicada à agricultura. (Embrapa Agroenergia, 2020).

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